Com mais de 20 anos de advocacia, Campelo Filho atua nas áreas do Direito Público, Empresarial e Constitucional. É mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS) e doutorando em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB. Professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (ESMEPI), Diretor Regional do Serviço Social do Comércio no Piauí SESC e Conselheiro do Sebrae no Estado, o advogado já foi Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PI e Membro da Comissão Nacional de Educação Jurídica do Conselho Federal da OAB. Também é escritor, autor do livro Reflexões Críticas e propositivas sobre a condução da política no Brasil e assina uma coluna semanal no Jornal O Dia. Sem falar que seus artigos também são constantemente publicados na revista eletrônica Consultor Jurídico CONJUR, considerado o mais influente site sobre a Justiça e Direito em língua portuguesa.
O currículo extenso e a responsabilidade profissional são proporcionais a uma agenda de atribuições e responsabilidades dentro e fora do Estado, o que o torna um dos advogados mais respeitados no meio jurídico.
Nesta entrevista à Revista Direito Hoje, Campelo Filho faz uma análise sobre o cenário jurídico, social e político do Brasil e é enfático ao dizer que o Direito, hoje, é condição de possibilidade para uma vida harmônica em sociedade. O advogado também fala sobre o ensino jurídico e o mercado profissional, a atuação do poder judiciário, a relação entre iniciativa privada e o estado, até chegar na política e como os empresários podem participar desse processo assumindo, verdadeiramente, um protagonismo para além do político, mas sim, social.
Acompanhe.
- DH Como o senhor enxerga o Ensino Jurídico no Brasil, hoje, já que foi membro da Comissão Nacional de Educação Jurídica do Conselho Federal da OAB?
Sem dúvida que há uma crise profunda no ensino jurídico. Alguns fatores assim a evidenciam, como os baixos índices de aprovação no Exame da Ordem (18%, aproximadamente, em média), o desinteresse dos alunos pelas aulas (magistrais em sua quase totalidade), a quantidade de cursos de direito que são reprovados em avaliações feitas pela OAB e ainda pela inobservância de grandes mudanças paradigmáticas, tanto no tangente à abordagem dogmático-jurídica tradicional quanto à mudança da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem (Lenio Streck trata muito desse tema). Acrescento também o enfoque que se tem dado nos cursos de graduação à preparação dos alunos para a realização de concursos públicos, que nunca deveria ser a função de um curso acadêmico de Direito.
Vejo ainda que os cursos jurídicos no Brasil possuem em sua quase totalidade uma grade curricular arcaica (tradicional-ortodoxa), que apenas informa um conteúdo muito mais voltado ao exercício prático do que à formação, com metodologias de ensino arcaicas e desestimulantes (baseadas em aulas magistrais), que não se adequam ainda às inovações tecnológicas e à melhor forma de ensinar as chamadas gerações Y e Z e Milenials.
- DH – Diante desse cenário, como isso se reflete no mercado de trabalho? Perspectivas para o futuro, em termos profissionais?
Há uma ilusão de que há trabalho e emprego para todos independentemente do mérito da qualificação! Como já disse em outras oportunidades, isso é uma falácia que só se concebe em um país que ainda não atingiu o nível de maturidade necessário para compreender a importância de uma formação de base, dogmática e principiológica, fundada em valores que têm o condão de penetrar no ser e efetivamente transformá-lo. Não é difícil observar que o mercado produtivo está repleto de desempregados (mal) graduados.
Por isso, tenho defendido a necessidade de que o ensino jurídico brasileiro precisa ser repensado. Mas isso não significa apenas encontrar uma forma de readequá-lo, mas antes transformá-lo. Repensar o ensino jurídico é tratar do futuro do país, é preparar pessoas para a pós-modernidade, para enfrentar os novos desafios que exsurgirão de uma sociedade cada vez mais complexa e global, onde não há mais fronteiras.
- DH A relação Sociedade X Estado X Direito foi a principal temática do seu livro Reflexões Críticas e propositivas sobre a condução da política no Brasil. Essa relação, claro, muda com o passar do tempo. Qual a sua avaliação nos dias atuais e como o Direito está inserido?
Não há dúvida de que o Direito, hoje, é condição de possibilidade para uma vida harmônica em sociedade, visto que não se tem como imaginar uma sociedade democrática e com governos legítimos, sem a existência do Direito. O Direito existe desde que o homem concebeu a ideia de sociedade. Na antiguidade, por exemplo, o homem já intuía o sentimento de justiça como algo decorrente da própria natureza humana. Daí o surgimento de normas consuetudinárias, como a Lei de Talião, que tinha por preceito principal o olho por olho, dente por dente. Na verdade, sempre houve a necessidade de que algo regesse previamente as relações entre os homens, organizando-as, e evitando, assim, que prevalecesse um sistema anárquico, onde a lei do mais forte se sobrepujasse, independente da razão. Esse algo, sem dúvida foi (e é) o Direito, que deve evoluir, acompanhando a própria transformação da sociedade e do Estado.
O Direito é o garantidor da obrigatoriedade de tolerância e respeito mútuo entre os homens que se relacionam entre si, e ainda em face do Estado, para os cidadãos que vivem em um mesmo espaço territorial e social.
Nos dias hodiernos, tem-se visto em alguns países e também no Brasil, o assomo da violência, da corrupção e de desvios de recursos públicos, o não atendimento a condições básicas de existência para um Estado dito Social, como saúde, segurança e educação, os quais, aliados a uma clara invasão de competências entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, terminam por tornar o cidadão incrédulo e insatisfeito com esse Estado Democrático de Direito.
- DH – O senhor tocou em um ponto que vivenciamos hoje e a impressão que temos é que esse Estado Democrático de Direito está em crise.
Disse, em outra oportunidade, que se nos países ditatoriais o povo tem ido às ruas para protestar contra eventuais desmandos, que atentam contra o direito à liberdade, em outros países, mesmo chamados democráticos, como o Brasil, o povo tem ido às ruas para clamar por direitos essenciais, que se traduzem em uma vida digna. E é aqui que entra em cena, necessariamente, o Direito.
O Direito é, sem dúvida alguma, fundamental para a manutenção da Ordem Social, mesmo que a gente considere em caráter utópico, uma Ordem que deva se concretizar numa convivência harmônica e feliz entre todos os seres humanos (mas não é pelo fato de ser uma possibilidade remota que não se deve buscar atingi-la). Por isso entendo que o Direito precisa urgente dar uma resposta à sociedade, mas como não tem dado essa resposta (e por isso mesmo) também está em crise.
- DH Quando o senhor fala que o Direito precisa dar uma resposta, está se referindo ao Poder Judiciário?
Sem dúvida que cabe ao Poder Judiciário mostrar a sua força dentro de um Estado Democrático de Direito, fazendo cumprir as normas, respeitando os aspectos sociais, econômicos e políticos, mas sem se desviar do caminho do bem e da justiça. Mas o Judiciário precisa evoluir adequadamente, compreendendo o Estado, a Democracia e os Direitos Sociais.
Mas não me refiro apenas ao Judiciário. Aliado a ele, a doutrina jurídica, os juristas, precisam trabalhar muito, estudar muito, rever seus conceitos. Entender as transformações em todas as searas, para assim trazer novas luzes, buscar respostas, encontra-las onde não existam, cria-las, portanto.
Também os operadores do Direito como um todo, advogados, defensores públicos, procuradores, professores, estudantes, todos, devem acordar para essa nova realidade, e contribuir para que o caminho da evolução e do crescimento social seja retomado.
- DH Fazendo um parêntese, já que o senhor falou juristas. O senhor se considera um?
No Piauí temos grandes juristas, como Celso Barros, Paes Landim, Luiz Gonzaga Viana, Nelson Nery Costa, o professor Borges, e outros mais. Estou ainda distante desse nível que eles atingiram. Mas eles me servem de estímulo para continuar estudando sempre, me capacitando sempre, pesquisando sempre, enfim. Quem sabe assim, algum dia, eu consiga atingir aquele nível. Mas o importante é querer crescer, evoluir, não apenas no conhecimento científico, mas especialmente evoluir como ser humano mesmo.
- DH Voltando ao tema da relação entre o Estado e o Direito, qual o principal desafio para que essa relação seja positiva?
O Direito e o Estado Moderno precisam ser repensados, uma vez que não têm sido capazes de atender às necessidades da sociedade, como não têm conseguido resolver problemas relativos aos direitos básicos do cidadão e que ainda são desrespeitados.
Por isso, já falei que o desafio que tem se descortinado para o Direito nesse primeiro quarto de século é encontrar meios de comprovar à sociedade que o Estado Democrático de Direito é a melhor alternativa ainda, para que a humanidade possa conviver em paz e harmonia, nessa nova sociedade de risco, como aponta Ulrich Beck, pós-moderna e globalizada, respeitando os direitos sociais almejados em um Estado Social. Há muitos estudos sobre essa temática. Sugiro ver ainda José Eduardo Faria e David Held.
O certo é que o mundo está em crise, da mesma forma que o Estado e o Direito. Também já disse que se respostas não forem encontradas, se saídas não forem dadas, o fracasso desse secular modelo tripartite de Estado é iminente, e ao fracasso dele também corresponderá o fracasso do Direito. Por isso tenho afirmado que ou o Direito salva o Estado Moderno, ou afunda com ele.
- DH Falando em desafio, o senhor é um dos maiores defensores da necessidade de integração entre o público e o privado, ou seja, entre empresas e governo.
Há alguns anos venho tratando dessa relação entre o público e o privado, demonstrando a necessidade de que haja uma verdadeira integração (uma simbiose positiva) entre ambos, se se quer de fato superar as crises que afetam o Estado e as Empresas. Essa discussão sobre a supremacia de um sobre o outro, no meu modo de ver já se encontra superada, sendo que este embate é extremamente prejudicial e não leva a lugar algum.
É preciso, porém, que alguns pontos sejam analisados, sendo o primeiro deles o fato de que o Brasil é um Estado Democrático de Direito e como tal está adstrito à legalidade dos atos a serem praticados, seja por parte do cidadão comum ou da iniciativa privada, que podem fazer tudo o que a lei não proíba, seja pelo Estado, que só pode fazer aquilo que a lei determina.
Mas o mais importante nisso tudo é que o Estado precisa reconhecer que não está só, isolado no mundo. Precisa reconhecer, também, a importância da iniciativa privada como fundamento que é da própria República Federativa do Brasil, por força do que estabelece o artigo 1º , IV, da CF/88 , e que hoje, o público e o privado são um corpo interligado, com muitos pontos de interseção e que por isso mesmo interdependentes. Se assim não entender corre-se o risco de ambos afundarem.
- DH Com a experiência que o senhor tem no Direito Empresarial e pela própria atuação em órgãos do setor, acha que o Estado poderia aprender com a iniciativa privada?
Antes de responder a este questionamento é preciso que se responda um outro: Quais são as obrigações do Estado? O Estado, em resumo, possui duas obrigações: uma para com o cumprimento de sua missão institucional, que a própria Constituição da República determina, que é a prestação dos serviços básicos à população: saúde, segurança, lazer e educação, por exemplo. Outra obrigação é aquela que assume ao contratar a iniciativa privada para a realização de atividades que não realiza (ou não pode realizar) diretamente como, por exemplo, a construção de uma ponte ou de uma estrada, a aquisição de carteiras escolares, de equipamentos médicos e hospitalares, veículos, computadores, etc.
No que tange à primeira obrigação, não precisar ser versado em ciência social, política ou econômica, para compreender que o Estado se encontra em situação de insolvência total. De fato, quando o cidadão deixa de sair à rua por medo de sofrer alguma violência contra a sua pessoa, ou quando não consegue ser atendido em um hospital público, para citar apenas estes dois pontos, é porque o Estado não garante nem segurança e tampouco saúde à população.
O mais grave nisso tudo é quando o Estado, além da insolvência social, também se encontra em situação de falência econômico-financeira. Aqui, respondendo à sua pergunta, vale a comparação com a iniciativa privada. Em situação de dificuldade financeira, a primeira medida a ser adotada pelas empresas, antes de atrasar suas obrigações, e antes mesmo de deixar de pagar os vultosos impostos, é buscar diminuir os gastos, podar os excessos, enfim, praticar uma política interna de contenção. Com o Estado, isso não acontece. O que vemos, só para citar um exemplo, é a criação de cargos para acomodar aliados.
- DH Por fim, como o senhor avalia o comportamento da classe empresarial na política?
Entramos em um ponto que parece um paradoxo, mas não é. Se por um lado, a política e os ditos políticos profissionais estão em descrédito, por outro, vemos também a ascendência de líderes bem-sucedidos na iniciativa privada entrando na política. Temos o exemplo mundial de Donald Trump e, no Brasil, o João Dória, governador de São Paulo, sem falar em outros nomes que surgiram na última campanha.
Independentemente do perfil de cada um, é bom que se diga, vejo isso como um fenômeno natural. Precisamos entender que o papel da iniciativa privada não se limita apenas a gerar empregos e movimentar a economia de um país ou, pior: serem meros patrocinadores de campanhas eleitorais, como tem acontecido no Brasil.
Os empresários precisam entender que sua participação nas discussões políticas é mais complexa e necessária, em especial, no momento atual por que passa o país. E quero acreditar que a classe empresarial está acordando verdadeiramente para essa possibilidade, não necessariamente de assumir um protagonismo político por si só, mas principalmente de um protagonismo social, de responsabilidade e conscientização sobre seu papel no desenvolvimento de uma nação.