O desenvolvimento da tecnologia, sem dúvida, tem trazido inúmeros benefícios para a humanidade, não só por propiciar desenvolvimento econômico, inclusive com a redução de custos de produção, aumento da produtividade, otimização e automação dos processos, mas também pelos importantes avanços na medicina e na própria educação, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Efetivamente, não há como não se considerar as vantagens obtidas pela humanidade através dos avanços tecnológicos, com o uso da inteligência artificial (IA), dos algoritmos, deep learning, robôs, etc.
Para além desses campos, a tecnologia permitiu uma maior integração e interação entre as pessoas, na medida em que possibilitou uma maior conectividade, com troca de conhecimentos e experiências. De fato, a utilização de sistemas com inteligência artificial (IA) e automação (ADM), que permite ainda que objetos se conectem uns aos outros, recebam e enviem informações utilizando a internet, tem sido responsável por um aumento considerável das informações e dos dados que são compartilhados e armazenados em todo o mundo.
A capacidade tecnológica mundial de armazenar, comunicar e computar informações, conforme pesquisa publicada ainda em 2012, em que o autor rastreou 60 tecnologias analógicas e digitais durante o período de 1986 a 2007, cresceu a uma taxa anual de 58%, por sua vez a capacidade mundial de telecomunicações bidirecionais cresceu 28% ao ano e as informações armazenadas globalmente tiveram um aumento de 23%.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o volume de dados no mundo tem aumentado exponencialmente. Para se ter uma ideia, na matéria intitulada “Big Data for Sustainable Development”̹, publicada em seu site, a ONU informa que em 2020 foram criados 64,2 zettabytes de dados, o que corresponde a um aumento de 314% em relação a 2015, aduzindo que hoje os dados são coletados passivamente, derivados de interações diárias com produtos ou serviços digitais, incluindo telefones celulares, cartões de crédito e mídias sociais. Ela dá conta ainda de que o volume de dados está crescendo porque estão sendo cada vez mais coletados por dispositivos móveis de detecção de informações e porque a capacidade mundial de armazenar informações praticamente tem dobrado a cada 40 meses, desde a década de 1980.
A utilização de inteligência artificial trouxe também alguns outros aspectos sociais relevantes, bastando observar que essa maior inte(g)ração entre as pessoas, através da expansão da internet e das suas redes de comunicação, aliada à própria globalização econômica, faz com que elas (pessoas), independente do espaço geográfico onde estejam, ou da suas nações originárias, e ainda em face da própria evolução e expansão do conceito de direitos humanos, sejam pertencentes a uma única categoria: a de seres humanos detentores de direitos fundamentais. A redundância aqui é aparente, e a história assim o confirma, considerando que ao longo da existência humana na terra, muitas atrocidades foram (e ainda são) praticadas contra pessoas justamente por fazerem parte de determinados grupos, religiões, raças ou origens.
Esse conceito de ser humano detentor de direitos fundamentais, sem qualquer adjetivação, possibilita a criação de um sentimento de pertencimento de todos a uma mesma categoria, sem discriminação, preconceitos ou rótulos, estabelecendo uma responsabilidade social para cada um, individualmente, e para todos em conjunto, pelo respeito aos valores sociais ligados à dignidade do ser humano. Não se pode negar que ao longo da história, sem dúvida, houve um continuado avanço em direção a uma socialização global, à medida que foram crescendo as discussões e debates sobre a proteção e a defesa dos direitos humanos, onde todos são eticamente e legalmente responsáveis.
Não se pode deixar de reconhecer, assim, a influência da tecnologia e do avanço da utilização da internet e das redes sociais nesse processo que culmina com essa desadjetivação do ser humano e com o surgimento da responsabilização social de todos, individual e coletivamente. Todavia, se por um lado toda essa intensificação das relações entre as pessoas e o aumento exponencial da velocidade de informação e de troca de dados permitiu que se pensasse nessa referida categorização, por outro, abriu margem para que outros direitos fundamentais fossem violados, como o da proteção de dados, da privacidade e da imagem. É que os dados se tornaram economicamente valorados, sendo inclusive objeto de comercialização, e ainda passaram a ser utilizados de modo que as pessoas começaram a ser manipuladas, a serem dirigidas não de acordo com suas respectivas vontades, mas de acordo com os interesses do mercado ou dos terceiros que possuíam esses dados.
Shoshana Zuboff assinala de forma muito contundente que todo esse processo de utilização dos dados das pessoas que acessam as plataformas digitais dessas empresas, especialmente Google, YouTube e Facebook, tem permitido a criação de uma nova ordem capitalista: o Capitalismo de Vigilância. Nesse sentido, esse novo capitalismo de vigilância já utiliza como objeto negocial, inclusive, o comportamento futuro das pessoas.
Desse modo, tem-se que a utilização dos sistemas de inteligência artificial, utilização de algoritmos e de automação devem necessariamente ser limitados ou fiscalizados para impedir que afetem os direitos fundamentais das pessoas, estes inseridos no campo dos direitos humanos, com respaldo Constitucional nos países democráticos, dentre eles o Brasil, bem como na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos.
É inegável que os sistemas de inteligência artificial e de automação podem atentar contra a liberdade das pessoas, o direito à privacidade e proteção de dados, bem como podem servir de instrumento de discriminação, exsurgindo daí a necessidade de que haja uma legislação forte, eficaz juridicamente, focada na proteção desses direitos fundamentais e que não se limite a mitigar os efeitos de eventuais ações que envolvam inovação e tecnologia.
É preciso enxergar os avanços da utilização da inteligência artificial, a despeito de sua grande importância, sob uma ótica que não deixe de ver os direitos fundamentais como essenciais à vida em sociedade em um Estado Democrático de Direito, que por isso mesmo se sobrepõe (ou devem se sobrepor) aos interesses relacionados à utilização desses sistemas de inteligência artificial e de automação, em especial quando estes possam afetar direta ou indiretamente aqueles direitos que são fundamentos intrínsecos à dignidade humana.