Vivemos tempos em que o direito à proteção de dados pessoais se tornou uma das trincheiras centrais na luta pelos direitos fundamentais. No entanto, mesmo diante de uma legislação como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), ainda há omissões significativas que precisam ser debatidas com profundidade. Uma delas é a ausência de menção expressa à identidade de gênero como dado sensível. E é justamente sobre essa lacuna – e suas consequências – que trata a obra “A Tutela da Identidade de Gênero na LGPD: Uma Análise na Perspectiva de Dado Sensível”, da mestra em Direito, Justiça e Desenvolvimento, Elaine Zordan Keller.
Tive a honra de conhecer a autora durante o curso de extensão sobre ESG, Inovação e Transformação Tecnológica realizado na École de Management de la Sorbonne, em Paris. Mais tarde, fui convidado a integrar a banca de defesa da sua dissertação de mestrado, oportunidade em que tive contato direto com um trabalho de extrema qualidade, comprometido com o rigor teórico e com a urgência prática de uma agenda inclusiva.
A obra de Elaine Keller parte de uma pergunta incômoda e necessária: por que a LGPD não reconhece, de forma expressa, a identidade de gênero como dado sensível? Essa omissão, como demonstra a autora, compromete a eficácia da norma na proteção de pessoas trans, travestis e não binárias, que seguem expostas a riscos reais de discriminação, violação de sua intimidade e exclusão institucional.
Em sua pesquisa, a autora percorre desde os fundamentos históricos da construção da identidade de gênero até os documentos internacionais mais recentes, como os Princípios de Yogyakarta, trazendo à tona definições indispensáveis para um ordenamento jurídico que se pretenda justo e democrático. Ela ainda destaca a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual, apoiando-se em vozes como a do especialista da ONU, Vitit Muntarbhorn: “Como você se sente em relação ao outro, isso é orientação sexual. Como você se sente em relação a si mesmo, que pode ser diferente do gênero atribuído no nascimento, é identidade de gênero”.
A LGPD, embora inspirada na GDPR europeia, ainda apresenta lacunas importantes. Uma delas é o próprio Artigo 5º, que não inclui a identidade de gênero entre os dados sensíveis, diferentemente da regulamentação europeia. A autora sustenta que essa omissão contribui para a invisibilidade institucional de pessoas trans e não binárias, em um país que, paradoxalmente, é signatário de tratados internacionais de proteção à diversidade e lidera estatísticas globais de violência contra essa população.
Outro ponto importante da obra é a crítica à ausência de garantias expressas no Art. 20 da LGPD sobre o direito à explicação de decisões automatizadas. Em tempos de algoritmos que operam com base em dados enviesados, esse silêncio normativo pode ampliar a exclusão social e digital, especialmente entre os grupos mais vulnerabilizados.
Keller propõe, com base em uma hermenêutica constitucional garantidora, que a LGPD deve ser interpretada à luz da dignidade da pessoa humana, reconhecendo o direito à explicação, à autodeterminação informativa e à proteção de dados sensíveis como pilares de um novo constitucionalismo digital. Ao final, a obra reafirma que a inclusão da identidade de gênero como dado sensível não é apenas uma demanda técnica ou jurídica – é uma exigência ética, política e social.
Mais do que uma dissertação acadêmica, este livro representa um chamado à responsabilidade. Um convite à construção de um Direito mais atento às pluralidades do corpo social e ao compromisso com a equidade. Como pesquisador que se debruça sobre os cruzamentos entre tecnologia, direitos humanos, globalização e inclusão, vejo nessa obra uma contribuição indispensável para o aprimoramento da legislação brasileira, das políticas públicas e do próprio debate público. Que este livro inspire outras pesquisas, outras decisões e outras políticas. Que ele contribua para que o Direito brasileiro caminhe, com mais firmeza, em direção a um futuro de justiça social e respeito à diversidade.