*Por Fernanda Abreu,  jornalista e advogada,

Ouvidora-Jovem da OAB/PI

 

O mundo virtual deixou de ser apenas um espaço de interação entre pessoas e de divulgação de momentos com amigos e familiares e tornou-se também um ambiente de negócios. Esse ambiente se tornou uma fonte eficaz de obtenção de informação, pois possibilita o registro de praticamente todos os dados da vida cotidiana, sendo que o armazenamento destes dados e as interferências por eles geradas são desconhecidos.

O avanço tecnológico ampliou as possibilidades de controle e vigilância. Esse cenário já foi apontado faz tempo. O filósofo francês Michel Foucault utilizou a arquitetura de uma prisão para explicar o princípio do panóptico, em que é possível instalar nas pessoas o sentimento de constante vigilância sem necessariamente ver quem o vigia.

Mais recentemente, Zygmunt Bauman lança a ideia de pós-panóptico e de vigilância líquida para explicar a sociedade contemporânea. No pós-panóptico não há mais qualquer necessidade de um olhar centralizador para nos sentirmos vigiados. Não podemos mais ver claramente os pontos de vigilância. Somos controlados e vigiados a cada movimento. A disciplina se dá a partir da disposição do próprio ser. Deixar-se vigiar é uma questão de segurança própria.

Por outro lado, mudanças trazidas pela Lei Geral de Proteção de dados – LGPD e pelas redes sociais para nossas formas de interação e como estas se tornaram uma parte principal em uma sociedade tanto pelo mercado consumidor como pelo corporativo. A exposição de dados na era virtual gera uma fonte inesgotável para a vigilância líquida, pois todo e qualquer rastro de uma pessoa é passível de ser identificado e capturado a qualquer momento.

As empresas têm procurado ter mais cautela na obtenção de informação do individuo através do banco de dados. Com cada vez mais dados sendo coletados com o nosso consentimento, o desconhecimento do limite que esses dados vão interferir nas nossas escolhas futuras geram certa confiança em digitar números de CPF, identidade e outros documentos.

Mas até que ponto nossas informações pessoais se transformam em um tipo de moeda de troca sem suas próprias regras e direitos? Pois cada vez mais, pessoas estão começando a pensar no direito de não divulgar dados, mas os usuários acabam num beco sem saída, pois a única forma de baixar o aplicativo ou programa favorito acaba sendo pela divulgação de dados. O usuário não tem direito de pensar assim “esses dados são meus e eu devo decidir como são usados, e talvez eu deva ser pago pra isso”.

Viver numa sociedade sobre crescente vigilância faz nos pensar nas relações de troca e reciprocidade. Como o consentimento é a base da LGPD, em algumas situações será necessária a realização da renovação do consentimento quando houver mudanças no modo do tratamento ou quando se tratar do tratamento de dados sensíveis do consumidor.

Bauman é responsável pela ideia de modernidade líquida. Ele vai dizer que valores importantes para a sociedade como amor e privacidade não possuem mais uma definição tão sólida como em outros tempos. Realça um cenário em que a sociedade exerce um papel de autocontrole e vigilância, desenhado a partir de um movimento concomitante da evolução da tecnologia digital e o advento das plataformas de relacionamento.

Note que há aqui, portanto, um diálogo importante entre a disposição pela exposição da sociedade, o uso das redes sociais e liberdade de expressão. Emitir opiniões, ideias, pensamentos, e usar as redes para o exercício da profissão coloca o indivíduo em evidência e sob vigilância.

No panóptico social, é a própria sociedade que começa a definir seus limites. Isso é visível nos comentários que acompanham todas as publicações feitas diariamente pelos usuários nas redes sociais.

As redes sociais são agentes desse apoderamento da sociedade. É a partir delas que um usuário comum exerce sua tarefa de vigilância sobre os atos dos seus “amigos”. É sobre esse leito que estamos redefinindo a noção de privacidade, por exemplo.

O direito de poder se expressar livremente é de fato irrestrito como preconiza a Constituição Federal? Se a lei veda o anonimato como ponderar o vazamento de dados? A plenitude da liberdade de expressão nunca esteve tão limitada, mas é vital para uma sociedade saudável que este direito seja assegurado em todas as esferas, incluindo aí a vigilância líquida como um mecanismo de freios e contrapesos.