Em sua coluna “Embargos Culturais” no Conjur, de 25 de março de 2018, o professor Doutor Arnaldo Godoy, uma das maiores culturas literárias desse país, escreveu instigante texto com o tema: “O drama de Capitu, a suprema injustiça e a tragédia das condenações sem prova”. Em sua exposição, que trata da obra machadiana “Dom Casmurro”, aborda sobre o problema da discriminação histórica da mulher.
A condenação de Capitu seria um absurdo jurídico, segundo o texto, considerando que “…a acusada não se defendeu. Essa nulidade é insanável. O ofendido é, ao mesmo tempo, juiz, promotor, narrador, relator e revisor. Um julgamento sério de Capitu não passaria pelo labirinto da jurisprudência construída em torno do artigo 155 e seguintes do Código de Processo Penal atualmente vigente.”
Ao ler o artigo, imediatamente lembrei-me de Desdêmona, personagem Shakespeariano, da obra clássica Otelo, O Mouro de Veneza, escrita por volta do ano 1603. Em Otelo, tal qual Dom Casmurro, a história gira em torno de temas relevantes e discutidos até os dias atuais, como racismo, amor, ciúme e traição.
Em que pese tratar-se de situações e realidades distintas, Capitu e Desdêmona foram mulheres vítimas, havendo muitas semelhanças em suas condenações. Otelo creu na infidelidade de sua esposa Desdêmona e a assassinou a sangue frio. Ele também, Otelo, a julgou, a condenou e executou a pena. Tudo sem qualquer oportunidade de defesa, baseando-se apenas em uma armação engendrada por Iago.
Godoy conclui que “ao condenarmos Capitu, caímos na armadilha que Machado de Assis nos armou. Nos esquecemos que Capitu não se defendeu e que não teve defensores. É na sua naturalidade, que no fundo é uma inocência humana que todos deveríamos ter, até prova definitiva em contrário, que se extrai a força e o argumento de sua redenção. Não se pode condenar com base em um olhar. Ainda que esse olhar seja o mais enigmático e desafiador de toda nossa literatura.
Um final eloquente e que remete o leitor a profundas reflexões, especialmente na época difícil que se vive no Brasil, em que a Democracia encontra-se em crise, abalada pela desarmonia entre os Poderes da República e pelos embates intrapoder. Veja-se a discussão durante a sessão plenária do STF (21.03.18) entre os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso.
O grave é que a fragilidade democrática termina por malgastar as garantias democráticas, como a presunção de inocência, previsto no artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal de 1988, e que impede condenações antecipadas e precipitadas, e que os julgamentos serão realizados de forma justa e com respeito à dignidade da pessoa humana.
Ocorre também que a mitigação da força desse princípio, quando mitigada por uma abalada Democracia, ganha um status que vai ao perigoso senso comum, fazendo com que a sociedade, de forma irrefletida, passe a julgar e a condenar as pessoas, em prejulgamentos os mais absurdos, como se passou a ver nas redes sociais. As chamadas Fake News já superam a quantidade de notícias verdadeiras que são divulgadas e a todo o momento pessoas estão sendo massacradas e vilipendiadas injustamente.
Assim, as Capitus e Desdêmonas se multiplicam, trazendo as obras em referência para uma realidade que talvez supere a própria crueldade que elas estampam.Se isto não for eloquente o suficiente, como demonstrou o prof. Arnaldo Godoy em seu belo artigo, para alertar sobre o perigo de condenações precipitadas, sem defesa, tal como vem ocorrendo no dia-a-dia das redes sociais, nada mais pode ser. Talvez só quando incrédulos e descrentes forem vitimados pelo próprio veneno.
*Texto publicado originalmente na edição de 29 de março de 2018 do Jornal O Dia.