A empresa Magazine Luiza está sendo alvo de um processo instaurado pela Defensoria Pública da União, ou seja, pelo Estado, que pede sua condenação em R$ 10 milhões por causa da implementação de um programa de trainee destinado exclusivamente para negros.

O valor foi pedido a título de indenização por danos morais coletivos, pelo que o defensor público classificou como “marketing de lacração”, que estaria, na sua interpretação, “violando direitos de milhões de trabalhadores, em função de discriminação por motivo de raça ou cor, inviabilizando o acesso ao mercado de trabalho” — como se, dentro do nosso contexto histórico sociocultural econômico, fosse possível haver um racismo reverso.

Ocorre que o Brasil é hoje um Estado com princípios, valores e diretrizes constitucionais democráticos, mas nem sempre foi assim… O passado escravagista da história nacional deixou, como sequela, um racismo estrutural arraigado na estrutura socioeconômica do povo, e é isso o que se pretende corrigir para que, então, se possa falar em tratamento igualitário.

É dentro desse contexto histórico que a Constituição Federal (datada de 1988) estabeleceu, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: “Construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, bem como definiu, como princípio da igualdade, o tratamento isonômico, pela aplicação da equidade, que vem a ser: “Tratar os iguais igualmente e os desiguais na medida de sua desigualdade” — justamente considerando as pessoas que foram colocadas em situação diferente, nesse caso os negros.

Por isso, o protagonismo da iniciativa privada que, espontaneamente, dispõe-se a implementar medidas no sentido de nos redimirmos, enquanto sociedade, desse triste passado diante da população negra, jamais deve ser inibido, mas, sim, celebrado pelo Estado, já que, em conformidade com as suas diretrizes constitucionais, colabora com o seu efetivo processo de Justiça de transição reparativa.

Nessa linha de raciocínio, pode-se concluir que, se o Estado estivesse desenvolvendo políticas públicas eficientes e capazes de alcançar os seus objetivos, a empresa privada não estaria se vendo na necessidade de desenvolver um processo seletivo diferenciado para que negros conseguissem ocupar cargos de liderança, porque eles já estariam, naturalmente, competindo em pé de igualdade com os demais candidatos.

Assim, através da reconvenção, pode-se discutir, judicialmente, a possibilidade de condenação do próprio Estado como responsável pelo que acusa à Magazine Luiza, comprovando-se diante do juiz que sua omissão é a verdadeira culpada por essa sociedade tão desigual, injusta e preconceituosa, cabendo, portanto, ao Estado indenizar a empresa, inclusive, pelos prejuízos causados em decorrência de sua litigância de má fé.

Reconvenção é o instrumento jurídico por meio do qual um processo judicial movido contra alguém pode ser rebatido a quem o moveu. Em dito popular, é como se “a magia virasse contra o feiticeiro” para que, assim, este possa ser condenado pelo que acusou ao outro.

Esse recurso de defesa processual serve como um verdadeiro contra-ataque a quem, injustamente, estiver acusando o outro de uma culpa que, na verdade, é sua.

Portanto, quando o Estado não respeitar os princípios da livre iniciativa e da intervenção mínima estatal, colocando em risco a liberdade de autogestão empresarial, através da abertura de um processo judicial interventivo nas suas atividades, é preciso avaliar se na defesa, junto à contestação, cabe também reconvenção. Por: Verena Kirejian Bertaglia (Conjur)

Em sua última decisão, Celso absolve homem condenado com base em prova ilícita

O processo penal não constitui nem pode converter-se em instrumento de arbítrio do Estado. Ao contrário, ele representa poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes que dispõem os órgãos de persecução. Assim, deve ser sempre observada a prerrogativa de que ninguém pode ser investigado, processado e condenado com base em prova ilícita.

Em nota, Celso informou se tratar de seu último julgado. A ordem é de 12 de outubro, um dia antes do ministro se aposentar. “Com essa decisão, encerro a minha carreira na Corte Suprema do Brasil, certo de que ‘combati o bom combate’. Com ela, concluo meu último rito de passagem e encerro como se esta fosse a minha ‘cerimônia do adeus'”, afirmou.

O caso concreto envolve homem condenado por tráfico internacional de drogas. Ele teria enviado, via postal, 47 gramas de cocaína a Barcelona, na Espanha. O único conteúdo probatório oferecido pelo Ministério Público Federal foi um exame grafotécnico, em que se compara a letra do suspeito com documentos anteriores assinados por ele. Ocorre que a suposta evidência foi colhida durante inquérito policial, sem o acompanhamento de advogado. O paciente em nenhum momento foi advertido sobre o seu direito de não produzir provas contra si próprio.

Por esse motivo, o juízo originário declarou a nulidade das provas. O TRF-2, por outro lado, validou o material, afirmando não haver registro de que o réu resistiu ao procedimento ou de que a autoridade policial se valeu de métodos coercitivos.

Para Celso de Mello, no entanto, a pessoa sujeita a atos de persecução não pode ser conduzida coercitivamente para ser interrogada ou para produzir provas contra si, exceto em casos de reconhecimento pessoal ou de identificação criminal.

“A análise dos presentes autos evidencia que realmente não houve, na coleta dos padrões gráficos do ora paciente para realização de perícia, a advertência — a que ele tinha indubitavelmente direito — sobre a sua inafastável prerrogativa constitucional de não produzir provas contra si. Nesse ponto, houve clara falha do estado, provocada pela ausência, por parte da autoridade policial, dessa necessária e essencial cientificação de que o investigado não estava obrigado nem podia ser juridicamente compelido a fornecer, de próprio punho, padrões gráficos para a realização da perícia grafotécnica”, diz a decisão.

Ainda de acordo com o então ministro, a acusação penal oferecida pelo Ministério Público Federal não encontra suporte em nenhum outro elemento probatório independente. Assim, diz Celso, nem mesmo a instauração de processo criminal está devidamente justificada.

“A transgressão, pelo Poder Público, das restrições e das garantias constitucionalmente estabelecidas em favor dos investigados culmina por gerar a ilicitude da prova eventualmente obtida no curso das diligências estatais, que provoca, como direta consequência desse gesto de infidelidade às limitações impostas pela lei fundamental, a própria inadmissibilidade processual dos elementos probatórios assim coligidos”, prossegue a decisão. Fonte: Conjur

 

***** Texto publicado originalmente no Jornal O Dia no dia 24 de outubro de 2020