Normalmente, quando se trata da arte cinematográfica ou literária, os protagonistas são sempre os heróis, os mais admirados, com mais virtudes, enfim, e isto independente da caracterização do tipo de herói (seja ele um herói mítico, lendário, etc.). Vários protagonistas heróis poderiam ser facilmente citados, como Ulisses, na Odisseia de Homero ou Policarpo Quaresma, da obra de Lima Barreto, ou ainda o Homem-Aranha da Marvel. O certo é que cada herói tem a sua missão e é assim que se tornam protagonistas de suas histórias, na medida em que empunham uma bandeira que a elevam acima de seus próprios interesses pessoais, ou mesmo ainda como forma de ser exemplo para os demais.
O herói, em verdade, é aquele que não pertence a si mesmo, já que vive para um objetivo que transcende a sua própria existência físico-material. É claro que existem ainda os heróis lutadores do dia-a-dia, que enfrentam os problemas da vida comum, com tenacidade, valentia e honra, muitas vezes superando as agruras de um país permeado pela violência, pelas drogas e pela corrupção. Mas não é deste último herói que estou aqui abordando nesse momento.
Mutatis Mutandis, o Supremo Tribunal Federal – STF também pode ser classificado como herói, cuja missão principal é defender a Constituição Federal e o próprio Estado Democrático de Direito. O STF é, assim, aquele herói protagonista que toda a sociedade brasileira confia(va) como guardião-mor do símbolo maior da Democracia: a Constituição. É como o herói Superman que protege o Planeta de loucos, assassinos e inescrupulosos, como Lex Luthor.
Todavia, recentemente, o herói STF foi mais uma vez colocado em xeque, e as virtudes do protagonista deram lugar às dúvidas e incertezas. De herói a vilão em uma decisão só, solitária, mas representativa. Um traficante internacional, que estava preso, foi posto em liberdade, com o fundamento de que o próprio sistema penal brasileiro não cumprira um determinado dispositivo legal. Por certo que não cabe aqui, nesse momento, discutir o mérito da decisão, que fora inclusive tornada ineficaz posteriormente (após o dano, diga-se), até porque advogados, magistrados e juristas divergem sobre essa questão, assim como o próprio Legislativo que criou o artigo utilizado de argumento para a soltura.
Mas o traficante solto já está foragido, procurado pela polícia internacional. O custo que o Estado teve para a captura do traficante foi em vão, e mais ainda deverá ser gasto agora, sem perspectiva de êxito. Em um jatinho particular, possivelmente, o traficante em liberdade voou sorrateiramente para outra paragem.
Muito tem sido o esforço do STF para vilanizar-se ao longo dos últimos anos, afinal quantas não têm sido as notícias sobre a Corte Maior que terminaram por gerar mais incertezas do que segurança para a sociedade. Parece até que há uma busca por imitar a indústria cinematográfica. Só que não observou aquela Corte Suprema que em Hollywood, normalmente, são os vilões que se tornam protagonistas heróis, como que, se em um surto de consciência, entendessem que deviam tomar o partido do bem. Não são os heróis que se tornam vilões. A não ser que o STF queira fazer um roteiro disruptivo, ultramoderno, em um estilo processual kafkiano. Também não foi observado que no cinema, para que ocorra essa transformação, roteiro e direção devem necessariamente estar perfeitamente alinhados, sob pena de ser um fracasso de bilheteria. É tudo o que se pode afirmar que não tem havido na Suprema Corte brasileira. Alinhamento entre direção e roteiro é algo que parece distante no STF, para se dizer o mínimo.
Mas pode ser também que esse herói STF seja do tipo herói trágico Shakespeariano. Aquele que, apesar das virtudes, morre ao final mesmo sem se tornar vilão. E talvez esta seja uma das genialidades de Shakespeare: matar os heróis, mantendo suas virtudes e eternizando-os. É fácil perceber que nas obras ficcionais, nem em Hollywood, nem em Shakespeare, os heróis tornam-se vilões, o que mostra que o STF está indo por um caminho inovador, contrário, como já apontei.
Claro que as consequências de uma escolha por tornar-se herói vilão podem ser opostas, até porque in casu não se trata de uma obra de ficção, mas da realidade, da Democracia brasileira e de suas terríveis incongruências, idiossincrasias que até poderiam ser admitidas naqueles campos da arte do cinema e da literatura, mas não quando diz respeito ao próprio futuro de Estado que diz Democrático de Direito.
* Francisco Soares Campelo Filho. Doutor em Direito e Políticas Públicas, advogado.