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O Poder Judiciário na análise dos conflitos em momentos de crise

Os efeitos da Pandemia provocada pela Covid-19 se fazem perceber em todos os âmbitos de atuação dos seres humanos, sejam eles sociais, políticos ou econômicos. Nesse sentido, as relações entre as pessoas, normalmente estáveis e consolidadas em um contrato social ou jurídico, sofreram impactos que provocaram não poucas ranhuras, quando não verdadeiras rupturas, que por sua vez fizeram com que surgissem conflitos de toda ordem. Em um país dito democrático de direito como o Brasil, esses conflitos, e restrinjo aqui para o campo das relações negociais, são resolvidos pelo Poder Judiciário, a quem cabe dizer o Direito em última instância. Mas como dizer o Direito na solução de conflitos em um momento de crise como este provocado em face de um período pandêmico? Eis aí mais um grande desafio. Quando digo desafio não remeto unicamente ao Poder Judiciário em si, mas sim para todos que trabalham com o direito e que são responsáveis de uma ou de outra forma por dar legitimidade à Justiça, como advogados, professores, juristas, doutrinadores, enfim.

Na Teoria dos Sistemas de Luhmann a sociedade não é concebida como um conjunto de homens ou de ações humanas, apenas, mas sim como um sistema autorreferente que cria suas próprias condições de existência e de mudança, tendo na comunicação a célula de todo esse processo de autocriação e de diferenciação do meio. Trago essa abordagem luhmanniana, porque ela parte de uma cisão com o modelo clássico de ciência para, na espera de um melhor futuro, fundamentar suas teorias sociais na ideia de evolução da civilização, focando nas pessoas como as operadoras centrais do aperfeiçoamento da sociedade.

Nesse sentido é que entendo que a análise dos conflitos surgidos no período da pandemia, necessariamente, deverá considerar todos os elementos que de alguma forma influenciaram para que aquelas ranhuras e/ou rupturas nas relações negociais surgissem.  Inseridos em um sistema social autopoiético toda e qualquer análise só se torna válida se for levada em consideração os elementos de comunicação que se vinculam entre si.

Muitas empresas, por exemplo, foram sobremaneira afetadas nesse período, ao ponto de milhares delas terem encerrado suas atividades. Todavia, por óbvio, descumpriram suas obrigações legais e contratuais, como o pagamento aos fornecedores e de aluguéis, para dizer o mínimo. Alguns empresários passaram a ter dificuldades até com a própria subsistência. Os contratados por essas empresas, por sua vez, ao deixarem de receber aquilo que lhes era de direito, também deixaram de cumprir suas obrigações, numa espécie de efeito dominó que culmina hoje com mais de quatorze milhões de desempregados no Brasil.

Ressalto, aqui, que a questão não se trata do isolamento social ou da determinação de fechamento das empresas por determinação do Estado, mas da forma que os conflitos surgidos no período pandêmico devem ser solucionados no Poder Judiciário.

É preciso que haja primeiro essa compreensão do sistema social em que se vive. Compreensão de que não se está isolado no mundo e de que os contratos, quaisquer que sejam eles, cumprem uma função social importante, justamente pelo inter-relacionamento que existe entre as pessoas, onde há uma repercussão social em qualquer relação existente.

Em segundo lugar, é preciso buscar luzes no próprio ordenamento jurídico existente, sem esquecer que o artigo 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro estabelece que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. É nessa Lei ainda, em seu artigo 21, que o legislador estabeleceu que as decisões judiciais que decretarem “a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa”, deverão indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas, e ainda “as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos”.

Então, o próprio ordenamento jurídico brasileiro traz elementos contundentes que apontam para uma nova condição de possibilidade na análise dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário, que serão úteis especialmente para dirimir aqueles provocados em decorrência da Pandemia causada pela Covid-19. Mais que isso, porém, o Direito, para ser dito, necessita ainda que esteja permeado pelo bom senso e pela razoabilidade daquele que o diz.

 

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“A vacina é um benefício coletivo, não é um benefício individual”.

Diferentes motivos levam os pais a não vacinarem os filhos, mas, até que ponto vai o poder de decisão dos pais quando o assunto é a saúde da criança? Quais as consequências legais para os genitores ou responsáveis? Em entrevista à repórter Lívia Azevedo, da Rádio Justiça, esclareço estes e outros questionamentos acerca de um tema de extrema relevância e importância para a sociedade, especialmente, nos dias de hoje com a pandemia do coronavírus.

RÁDIO JUSTIÇA: Os pais podem deixar de vacinar os filhos por motivo de crença religiosa? O que diz a legislação sobre isso?
CAMPELO FILHO: O primeiro aspecto que eu acho relevante tratar é que a saúde está na Constituição, no artigo 196, como um direito de todos e um dever do estado. A mesma seção que trata sobre a saúde, também diz que são de relevância pública as ações e os serviços de saúde e que cabe ao poder público dispor da regulamentação, fiscalização e controle. Penso que ninguém tem dúvidas que a vacinação é uma questão de saúde – que a vacinação contra a covid19 é uma questão de saúde – e o estado é obrigado a estabelecer essa política pública de vacinação por conta de sua responsabilidade constitucional.
Quando nós discutimos sobre a questão da obrigatoriedade ou não da vacina é importante destacar, primeiro, que a vacina de um indivíduo representa um bem para a coletividade, uma vez que essa pessoa quando vacinada deixa ou, pelo menos, diminui essa possibilidade de não se contagiar pelo vírus, mas também de contagiar outras pessoas. Então, a vacina é um benefício coletivo, não é um benefício individual. Essa questão, inclusive, chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) recentemente, em dezembro do ano passado, e o ministro Luiz Roberto Barroso defendeu exatamente isso. Ele disse que o direito à saúde é coletivo e as crianças e adolescentes que ainda não têm a intenção volitiva das suas vontades estabelecidas com autonomia, vamos dizer assim, não podem ficar reféns de uma decisão familiar, porque o pátrio poder, neste caso, não pode ser invocado. Em outras palavras, o ministro Barroso defendeu que “o poder familiar não autoriza que os pais, invocando uma convicção filosófica ou religiosa, coloquem em risco a saúde dos próprios filhos e, via de consequência, a saúde da coletividade”. Então, esse é um dos casos em que se justifica que o estado seja paternalista e se sobreponha ao pátrio poder familiar.
Outro aspecto importante e que vale o esclarecimento é a seguinte situação: E se o pai impedir que o filho seja vacinado, vai se fazer uma vacinação forçada das crianças ou adolescentes? Não, não é dessa forma. O estado tem que estabelecer, através de medidas indiretas, regras que obriguem os pais a vacinarem seus filhos, como por exemplo, a restrição ao exercício de algumas atividades ou a presença em determinados lugares, a exigência do comprovante de vacinação da criança para efetuar matrículas no colégio, dentre outras. Estas são algumas maneiras indiretas que podem ser estabelecidas pelo estado, de modo que obriguem os pais a vacinarem seus filhos.

RÁDIO JUSTIÇA: Como fica o direito à liberdade religiosa e o direito à saúde? Como achar esse meio termo e como o estado consegue intervir sem desrespeitar o direito à liberdade religiosa, mas entendendo que há esse direito à saúde e à vida?
CAMPELO FILHO: Os direitos precisam ser analisados num eventual conflito que possa existir entre eles. Neste caso, o direito à liberdade religiosa vai se contrapor ao direito à vida e não é só à vida do indivíduo, mas à vida da própria coletividade. Então, nessa análise desses direitos, o que deve prevalecer é o direito à vida, à saúde coletiva, em relação à crença religiosa ou filosófica, porque essa crença se vincula a um indivíduo apenas e nós estamos falando aqui não é sobre a vida de um único indivíduo – que por si só já deve se sobrepor, sem dúvida, à questão da crença – mas da vida da coletividade.
Esse conflito também foi analisado pelo STF e ao apreciar o tema, que foi um recurso feito por procuradores da Associação Evangélica que questionaram essa obrigatoriedade, o Supremo disse o seguinte: “É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, que tenha sido incluído no Programa Nacional de Imunizações (PNI) ou que tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou que seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou município com base em um consenso médico-científico”. Então, nestes casos, é constitucional essa obrigatoriedade e, além disso, também não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis.
RÁDIO JUSTIÇA: Dr. Campelo, então, quais são as consequências legais de não vacinar os filhos? Existem penalidades para isso?
CAMPELO FILHO: Na verdade, as consequências já devem estar definidas no próprio regramento que vai estabelecer a obrigatoriedade. Em alguns países, por exemplo, Europa, Israel, passaram (ou vão passar) a exigir o cartão de vacinação comprovando que as pessoas foram efetivamente vacinadas para que elas possam frequentar determinados ambientes, determinados lugares, por exemplo, para matrícula em colégio público, a pessoa terá que apresentar a carteira de vacinação, comprovando que a criança recebeu a vacina.

Entrevista publicada originalmente no dia 06/03/2021 no Jornal O Dia

 

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